Oferecer dignidade, ressignificar espaços, garantir novo sentido à vida e, sobretudo, ajudar a sonhar. E, não importa onde estejam os sonhos – se nos movimentos graciosos de 120 crianças que compõem o Balé da Ralé, nas histórias das famílias de 51 lares reformados pela ONG ReforAmar ou nas dezenas de pessoas em situação de rua que procuram acolhimento junto ao projeto Alimentando com Amor.
O fato é que, à frente dessas iniciativas estão três mulheres potiguares e fortes – Saryne Fernandes (Balé da Ralé), Fernanda Silmara (ReforAmar) e Cida Lima (Alimentando com Amor) que se permitem sonhar diariamente para mudar a realidade de quem está ao redor. A TRIBUNA DO NORTE conversou com as três para entender o que move o trabalho árduo (e voluntário), conduzido com muita dedicação para enfrentar os desafios e vibrar junto a cada conquista. Acompanhe:
Mais de 50 lares reformados

A ReforAmar é o mais antigo dos projetos. Ganhou vida em julho de 2018, embora a semente embrionária tenha surgido bem antes, ainda na infância de Fernanda Silmara, de 28 anos. A engenheira civil é a caçula dentre cinco irmãs – ela tem ainda um irmão, o mais novo dentre os seis filhos de uma dona de casa e um padeiro. Fernanda cresceu em uma casa “insalubre”, como ela mesma define, de taipa e tijolo branco, no bairro do Alecrim, na zona Leste de Natal. Na infância e adolescência tinha vergonha de receber a visita dos amigos depois de um episódio que lhe marcaria ainda hoje.
“Uma vez, quando criança, levei uma amiguinha para me visitar e ela comentou: ‘nossa, sua casa cheira mal’”, conta a engenheira. O imóvel, segundo ela, estava em condições precárias. Colchões e roupas, molhados pela chuva que escapava do teto em forma de goteiras, tinham cheiro de mofo. A situação só começou a mudar depois que Fernanda iniciou o Ensino Médio no Instituto Federal de Educação do Rio Grande do Norte (IFRN). Graças a uma bolsa, no valor de R$ 350 que recebia da instituição e à ajuda de um tio, em quatro anos, a casa foi inteiramente reconstruída, assim como a autoestima de Fernanda.
Na etapa final dos serviços, ela cursava Engenharia Civil em uma universidade particular e Construção de Edifícios (Tecnólogo) no IFRN. Um dia, ao chegar à própria casa depois da faculdade, a então estudante se emocionou com o que viu. “Cheguei, minha casa estava toda com cerâmica e o telhado, novinho, sem risco de desabar. Não havia fiação elétrica exposta. Isso significou muito, porque nunca tive uma casa com cerâmica. Sei que parece bobo, porque para muita gente é algo banal. Eu estava no segundo ano da faculdade”, ela relembra emocionada.
A partir dali, decidiu que queria oferecer às pessoas muito além de uma casa – um lar onde, da mesma forma que ela, fosse possível sonhar com dignidade. Fernanda e a família não vivem mais na residência que serviu de inspiração para a ReforAmar, mas as vivências daquela época a acompanham até hoje e servem de motivação para levar o projeto adiante.
“Nós estamos aqui para servir ao próximo e evoluir em conjunto com as pessoas”. Esta é uma das filosofias de vida da engenheira, que sempre fez questão de dedicar tempo ao trabalho voluntário. Antes da ReforAmar, ela e um grupo de amigos cruzavam a cidade todos os sábados para visitar crianças hospitalizadas. Na bagagem, pincéis, tintas, tiaras e chapéus. No coração, o desejo de fazer o bem. O riso e as expressões de espanto que o grupo conseguia despertar nas crianças eram o combustível para retornar.
Foi nessa época, quando Fernanda tinha por volta de 15 anos, que os laços de amizade com Daniel Sales se fortaleceram. Ele, por sinal, foi um dos primeiros contemplados com o trabalho da ReforAmar, em 2019. “Nossa casa estava deteriorada, com o teto quase caindo, mas nem eu, nem minha mãe ou meu irmão tínhamos dinheiro para fazer uma reforma”, relata Daniel. Desde então, o projeto só cresceu e ganhou sede própria, em um galpão doado por uma empresa da cidade, no bairro de Candelária, na zona Sul da capital.
No local funcionam a sede administrativa e o bazar, que serve como meio para arrecadar recursos para o projeto. Além do bazar, algumas formas de captação financeira são realizadas, dentre elas, a ReforAmar Capacita, que oferece cursos para a área da construção civil sob o pagamento de valores revertidos para a ONG, inscrições em editais, doações avulsas e mensais, realização de eventos para arrecadação de recursos e parcerias com empresas.
Os critérios para escolher os lares que serão recuperados são os seguintes: casa não alugada, falta de condições de fazer a reforma, bem como uma lista de prioridades: residências com idosos e crianças, público LGBTQIA+, mãe solo. Instituições filantrópicas também podem ser inclusas nas ações. A maioria das pessoas que integram a ReforAmar é voluntária, mas seis delas estão na sede diariamente e são contratadas.
As formas de doação vão desde a divulgação do projeto, passando pela atuação nas demandas de gestão ao auxílio no bazar (que envolve a doação de itens), até ir à execução das reformas para por a mão na massa. “Também podem ser doados valores mensais, por meio de cartão de crédito, doações avulsas, como vaquinhas ou inscrições no projeto Capacita”, descreve Fernanda.
Como ajudar
Pix: reforamar@gmail.com
Informações: @reforamar
“Ver pessoas procurando comida no lixo me cortava o coração”

O Alimentando com Amor, projeto que acolhe pessoas em situação de rua, nasceu em 2020, dois anos depois da ReforAmar. As lembranças da infância de Cida Lima, fundadora da ONG, corroboram que o desejo de ajudar o próximo sempre esteve presente no coração da mulher, de 54 anos. O pai, agricultor, e a mãe, lavadeira de roupa, são as maiores inspirações. A vivência com os dois na pequena cidade de Touros, no litoral Norte do Rio Grande do Norte, ensinou lições que Cida jamais esqueceu.
“Quando eu era criança, via papai comprar caçuás [grandes cestos de vime, cipó ou bambu] de peixes para doar a famílias carentes. Eu achava aquilo tão bonito. Ele mesmo tratava e distribuía os peixes”, conta, enquanto relembra um passado feliz. Ela mudou-se para Natal ainda menina, aos oito anos, para morar e trabalhar em uma casa em Morro Branco, bairro da zona Sul da cidade. Com a família que a recebeu, aprendeu a cozinhar.
Cida trabalhou como empregada doméstica e auxiliar de serviços gerais. O desejo de ajudar as pessoas sempre a acompanhou. “Às vezes, quando ia ao trabalho, via as pessoas procurando comida no lixo e doava minha marmita, porque aquela situação cortava meu coração e me machucava muito”, conta. Ao se mudar para a Cidade Alta, no Centro de Natal, Cida passou a organizar as ações que eram realizadas no bairro para a entrega de doações a famílias carentes, trabalho que segue fazendo até hoje. Mas ela queria mais.
Quando soube que a casa onde mora atualmente iria ser desocupada, decidiu deixar o apartamento onde vivia para alugar o imóvel e abrir as portas para acolher pessoas em situação de rua. Atualmente, além dela e da filha pequena, 32 moradores dividem o espaço, que conta com seis quartos distribuídos em 486 m² de área total. “Me sinto tão feliz com o projeto. Eu penso: se minha mãe estivesse viva iria ter o maior orgulho de mim. Sou grata a ela por ter ajudado a me tornar a pessoa que eu sou. Nós conversávamos muito. Ela é minha referência em tudo”, diz Cida, emocionada.
A casa ampla situada na esquina das ruas Santo Antônio e Professor Zuza, no Centro da capital potiguar, chama atenção pelo enorme grafite que enfeita as paredes do lado de fora. Os contornos mostram o rosto com os traços firmes de uma mulher ciente do que é necessário fazer para conseguir manter de pé o projeto sonhado há tanto tempo. Thiago Leonardo, de 27 anos, que vive no local desde 2021, encontrou muito mais que acolhimento junto ao projeto.
“Cida me acolheu de imediato, como um filho. Então, é como se ela fosse uma grande mãe. Não tem nada que pague ter um lugar para ser cuidado. E aqui, todos nós somos muito bem cuidados”, afirma. Para Cida Lima, que ilustra uma das pinturas da parede da casa, feita pelo artista Erre Rodrigues no ano passado com recursos da Lei Paulo Gustavo, agora é hora de buscar a realização de novos sonhos. “Quero conseguir uma casa, que pode ser doada pelo poder público e criar um espaço reservado apenas para as mulheres”, revela.
Se do lado de fora, as paredes exibem a imagem de Cida, por dentro elas estão repletas de mensagens retiradas de passagens bíblicas. As frases representam bem mais do que um ato de expressão que evidencia a devoção religiosa de Cida: são também o combustível para traçar os próximos passos do projeto e uma forma de agradecer pelas conquistas alcançadas. Um dos avanços celebrados é a criação de um CNPJ (cadastro de pessoa jurídica que transformou o projeto em ONG).
“Costumo dizer que, com isso, nasceu mais um filho. Agora somos uma ONG, o que nos permitiu receber um carro da Justiça Federal, que é utilizado para arrecadar as doações e fazer a distribuição de marmitas nas ruas, trabalho que continuo desenvolvendo”, relata Cida Lima. Manter-se apenas com doações é o grande desafio, segundo ela. O projeto sobrevive graças à ajuda de pessoas de Natal e de cidades próximas, como Parnamirim, na Região Metropolitana. Podem ser doados dinheiro, alimentos, móveis, roupas e outros.
Como ajudar
Pix: 51.753.476/0001-34
Informações: @alimentando comamornatal
Sonhos em movimento

Uma menina que sonhou viver da dança, cresceu, estudou e agora busca retribuir as conquistas alcançadas ajudando as crianças a trilhar o mesmo caminho. É essa a força motriz de Saryne Fernandes, de 32 anos, que tem um único objetivo: manter acesa a chama da transformação para pouco mais de uma centena de meninas e meninos da comunidade onde vive. Saryne é formada em Dança pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), embora a idealização do sonho de se tornar bailarina tenha começado na adolescência, quando a mãe conseguiu uma bolsa de estudos para ela no Sesc.
Depois disso, Saryne dançou pela Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão (EDTAM) e pela Capitania das Artes. Em seguida, já formada e a partir de uma experiência de vida pessoal, quis contribuir para que as crianças com realidade igual à dela tenham oportunidades semelhantes, se assim desejarem. “Quando fui ter meu filho, tive uma eclâmpsia. A experiência de quase morte me fez entender que era preciso cumprir uma missão. Compreendi que eu precisava mudar a vida das crianças da minha comunidade. O Balé da Ralé me trouxe essa chance”, conta.
A bailarina e professora, que vive na comunidade Novo Horizonte, antiga Favela do Japão, no bairro das Quintas, na zona Oeste da capital, fez então uma pesquisa para saber como seria a demanda por aulas de balé na localidade e descobriu que havia dezenas de crianças interessadas. Os primeiros ensaios, em 2021, ocorreram na longa escadaria do bairro, a céu aberto, até que a avó de uma das integrantes cedeu uma pequena casa que serve de espaço para as aulas. Os uniformes foram doados, mas ainda hoje nem todas as crianças têm sapatilha.
“O projeto nasceu com o intuito de desmistificar a ideia de que o balé clássico [o foco da iniciativa] é para os ricos e de mostrar que as crianças podem ser o que elas quiserem. O Balé da Ralé representa de fato, uma importante transformação social para a comunidade”, afirma a professora. Saryne cresceu em outro bairro carente de Natal, a Cidade da Esperança, na zona Oeste. Ela mudou-se para a antiga Favela do Japão há 13 anos. O trabalho na comunidade não se limita às aulas de balé. São oferecidas também aulas de capoeira, hip hop e reforço escolar.
Há doações de cestas básicas, gás de cozinha, vale alimentação, kits de higiene pessoal, brinquedos, material escolar e roupas. Há ainda aulas de inglês e alfabetização básica para adultos e crianças, além de palestras sobre saúde da mulher uma vez por mês. O maior custo é com a alimentação dos alunos – são distribuídos cerca de 600 lanches por semana. Por isso as doações são tão importantes para o projeto. Além do número atual de participantes, há uma fila de espera de 270 crianças, que sonham em fazer parte do Balé da Ralé.
As conquistas do grupo se fazem nos esforços do dia a dia de Saryne e das demais voluntárias (são 13, no total). Em 2022, o grupo montou o espetáculo “Eu sou favela”, que conta a história de moradores da comunidade e foi apresentado no Teatro Alberto Maranhão. Em 2023, o Balé da Ralé brilhou mais uma vez no palco do TAM, com o espetáculo “Nossas Raízes”, onde as crianças contaram a história do Brasil sob a ótica dos ancestrais negros e indígenas.
Saryne se diz orgulhosa do caminho já trilhado e conta que quer levar a mensagem do voluntariado por muito tempo. “Ser voluntário não é um trabalho. A gente corre muito atrás para fazer o que é possível, mas, quando em penso em voluntariado, eu penso em transformação social e sei que isso vale muito a pena. É uma mensagem que eu tenho passado para os meus filhos também, porque eu entendo que, assim, daqui a alguns anos, nós vamos ter uma vida muito melhor”, afirma.
Quando questionada sobre o que o projeto significa para ela, Saryne não titubeia. “O Balé da Ralé é vida”. Para 2025, o principal objetivo é a reforma da sede, um espaço ainda com estrutura precária. O intuito é garantir maior conforto para crianças e voluntárias. Estas, aliás, são parte igualmente importante do projeto, fruto da atuação de Saryne em outras iniciativas pela cidade.
É o caso de Brenda Vieira, de 17 anos, que se tornou voluntária em 2023 e dá aulas no Balé duas vezes por semana. “Fui aluna de Saryne durante cinco anos em outro projeto e, assim como ela, conquistei uma bolsa para dançar na Capitania das Artes. Foi assim também que ganhei a chance de vir para cá. É uma sensação muito boa trabalhar com crianças. Saryne é uma pessoa incrível que acompanhou toda a minha história no balé, que viu e sempre parabenizou minhas conquistas”, narrou.
Entre as pequenas integrantes do grupo, o sentimento é de encantamento. “Vim por causa de uma amiga e hoje acho tudo muito especial”, diz Franciele Rodrigues, de 10 anos. “Amo estar aqui. Sonho ser bailarina um dia”, afirma Sofia Emanuele, também de 10 anos. – Você sonha em dançar em algum grupo de balé especial? – pergunta o repórter. “Para mim, não existe grupo mais especial do que esse”, responde a menina.
Como ajudar
Pix: 45.322.227/0001-91
Informações: @baledarale
Confira mais depoimentos de Cida, Saryne e Fernanda a seguir:
Tribuna do Norte