Presente em concentrações baixas em diferentes produtos do dia a dia, mas tóxica a depender da dosagem, a clorexidina está no centro das investigações sobre as circunstâncias que levaram 12 pacientes a perderem parte da visão após se submeterem a um mutirão de cirurgias de catarata em Taquaritinga (SP).

Depois que os casos foram denunciados, o grupo responsável pelos procedimentos veio a público, confirmando que a equipe errou ao utilizar o antisséptico, indicado apenas para desinfecções superficiais na pele, diretamente nos olhos, no lugar de um soro que tem função de hidratar o sistema ocular.

Professor na área de oftalmologia há mais de 20 anos na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (SP) e participante de um recente estudo que avalia os riscos da clorexidina para a córnea, Eduardo Melani Rocha explica que a substância pode sim ser perigosa em contato com os olhos, mas que isso depende do tempo, da frequência de exposição e do local de contato.

No caso de cirurgias, como a de catarata, segundo ele, complicações e inflamações por contatos acidentais da substância com a parte superficial dos olhos podem ser revertidas se o profissional agir rapidamente. Por outro lado, o contato desse produto químico com o interior do globo ocular – por uma eventual incisão dele no lugar do soro, por exemplo – pode resultar na cegueira do paciente.

“A córnea é uma lente biológica, e uma vez destruída essa capa interna que faz o controle de líquido, perde a capacidade de controlar líquido, começa a inflamar, fica fosca, perdeu a função. Perdeu a estrutura, perdeu a função”, explica.

Nos tópicos a seguir, entenda como ocorre uma cirurgia de catarata e quais os riscos de utilização da clorexidina para os pacientes:

O procedimento consiste em realizar uma troca de fluídos no interior do globo ocular, que em 90% é composto por água. Uma caneta específica, ao mesmo tempo em que extrai o líquido que está lá dentro, incluindo o cristalino que deixa o olho opaco, insere outro líquido, um soro repleto de sais minerais e de PH neutro, como o soro Ringer, que serve para hidratação.

Essa incisão muitas vezes é realizada com o uso de metilose, uma espécie de gelatina que protege as células da córnea do contato direto com o instrumento cirúrgico.

Cirurgia de catarata consiste em remover o cristalino opaco na parte interna do olho para implantar uma lente artificial e restabelecer a visão — Foto: Aurélio Sal/EPTV
Cirurgia de catarata consiste em remover o cristalino opaco na parte interna do olho para implantar uma lente artificial e restabelecer a visão | Foto: Aurélio Sal/EPTV

Durante o processo, uma minúscula lente feita com uma mistura de polímeros não rejeitados pelo corpo é inserida dentro do globo ocular para substituir o cristalino.

“Ela dobrada passa naquele pequeno buraco para entrar no sistema fechado, como se fosse um pequeno CD, o diâmetro de um botão de camisa. Lá dentro ele se espalha e ocupa onde estava o cristalino do indivíduo.”

Os profissionais também atentam para fazer uma incisão que permite o selamento natural dos tecidos do olho após a cirurgia. Ao final do procedimento, que geralmente leva em torno de 30 minutos, o paciente é liberado para permanecer em repouso em casa, tem prescrição para uso de antibióticos, explica Rocha.

“Em geral, na mão desses cirurgiões muito habilidosos, experientes, demora menos de meia hora hoje em dia com esses sistemas mecanizados. A gente costuma ensinar na faculdade que em 15 dias o indivíduo está apto a voltar às atividades normais dele.”

Quais os riscos da clorexidina para os olhos?

Além da concentração, a solução usada para assepsia cirúrgica é transparente e facilmente confundida com outras substâncias.

Ao revisar relatos médicos de cirurgias realizadas com cerca de 40 pacientes, um grupo de estudo na USP que Rocha integrou apontou que, nessas circunstâncias, pode ocorrer de resíduos de clorexidina, usada nas pálpebras e outras partes da face acabem acidentalmente tendo contato com a parte externa do olho.

Réplica da estrutura do olho humano — Foto: Aurélio Sal/EPTV
Réplica da estrutura do olho humano | Foto: Aurélio Sal/EPTV

De acordo com o professor, isso pode ser revertido pelo médico, se ele agir rapidamente.

“É raro, mas isso tem documentação. Aí ele queima a superfície. O indivíduo tem desconforto, porque essa superfície é muito dolorida. E aí o que acontece é que no final da cirurgia ou dias depois é lavar aquilo tudo e fazer com que o máximo seja removido e a toxicidade diminua.”

Outra situação bem distinta é, se acidentalmente, o médico confundir o soro de hidratação com a clorexidina e injetá-la no interior do globo no momento da incisão para troca de fluídos. Nessas circunstâncias, os resultados são praticamente irreversíveis, segundo ele, porque aquelas células não têm condições de se renovar. Com isso, ocorre uma inflamação de tecidos que resulta na perda da visão.

“Quando entra em contato, a estrutura já sente aquela toxicidade e fica esbranquiçada. (…) Foi parar dentro. Não era nem para ter chegado lá, não podia. Serve de bochecho, em doses baixíssimas, serve para lavar lente de contato, mas não foi feito, planejado para estar dentro do olho.”

Existe um produto alternativo à clorexidina?

Sim. Outro método de desinfecção pré-cirúrgica disponível e conhecido é o uso de iodopovidona, que, diferente da clorexidina, tem uma coloração própria e também requer alguns cuidados próprios, mas têm a mesma ação antibacteriana.

“Ela é muito menos estudada dentro do olho, porque realmente é um antimicrobiano menos popular. Menos utilizado, é utilizado só na superfície, na superfície é bem estudada, e mais segura.”

A utilização de um ou de outro, segundo o professor, em cirurgias oftalmológicas tem mais a ver com a escolha do profissional do que com eventuais restrições. Ele ressalta que, em muitos casos, existe uma pré-concepção, que não necessariamente se sustenta, de que o iodo é alergênico.

“Nenhum dos dois é proscrito, nenhum dos dois é proibido, usa-se por preferência.”

Com base em estudos feitos em 2024 com outros pesquisadores da USP, até o momento apenas apresentados em um congresso de oftalmologia, Rocha aponta questionamentos sobre o uso de antissépticos em cirurgias:

  • melhorar os protocolos de prevenção para o uso de clorexidina;
  • melhorar o acompanhamento dos pacientes no pós-cirúrgico para reverter o mais rápido possível eventuais quadros de toxicidade: “Usou isso, então precisa de um exame ocular detalhado porque, tendo isso, a intervenção que é lavar, cuidar logo em seguida, o prognóstico, que é o desfecho, é muito melhor do que deixar, porque a toxicidade vai aumentando conforme o tempo de exposição.”
  • avaliar a possibilidade de se usar, com mais frequência, a iodopovidona: “estamos hiperestimando o risco dela, quando parece que ela seja mais segura.”

g1

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